domingo, 4 de abril de 2010

Folga do ócio

(Matéria minha que saiu no Jornal de Teatro de março.)

As visões de mundo mais cínicas costumam gerar alguma frase charmosa para ser usada nos momentos de síntese. A citação mais famosa dessa faceta do jornalismo foi pronunciada no faroeste “O Homem que Matou o Facínora”, de John Ford. No filme, o repórter Maxwell Scott, resumia assim sua filosofia profissional. “Se a lenda for maior que o fato, publique a lenda”. Mr. Scott radiaria de felicidade ao receber essa pauta, sobre como “merda” tornou-se a coisa certa a ser dita nos momentos que antecedem uma peça. Palpites e lendas prevalecem onde a certeza já não existe.

Mas primeiro, vamos aos fatos. Um dos pontos em comum do teatro em diversas culturas é a superstição. Nessa lógica nada poderia ser menos digno de sorte do que o simples desejar de boa sorte, frase tida como maldita para atores e diretores de todo o mundo. Era necessária uma outra sentença, um código próprio ao espaço teatral. A palavra mérde começou a ficar popular nas coxias da França a partir do século XIX.

Aí começam as divergências. Há inúmeras versões para o acontecido, cada qual com seu nexo próprio. Uns vão pelo caminho mais simples, o da dialética. Se boa sorte dá azar, logo é preciso desejar algo muito ruim para garantir que tudo corra bem. E o que pode ser pior que... Bem, já deu pra entender.

Outros repudiam esse racionalismo extremado e buscam sua resposta numa fábula singela. Um ator iniciante se preparava para a mais importante apresentação de sua carreira, com a presença dos críticos mais conceituados da cidade. Ansioso, o pobre rapaz errou o caminho, foi assaltado, deparou-se com um incêndio e quando finalmente chegou ao teatro, pisou nas fezes que um cachorrinho deixou por ali. Abriu a porta gritando um dos nomes daquilo que emporcalhara seu sapato. Pouco depois, subiu ao palco e consagrou-se com a melhor atuação de sua vida. Essa é a explicação predileta da atriz Guta Stresser, que contou o fato à TPM, respondendo uma enquete feita pela revista, sobre a relação dos atores com a palavra.

Já para Marcelo Duarte, autor dos livros da série Guia dos Curiosos (espécie de Bíblia nerd nos tempos pré-Google) a origem é literária. “Em 18 de junho de 1815, tropas inglesas derrotaram o exército francês, que foi intimado a se render em Waterloo, na Bélgica. O general inglês Colville ordenou: "Bravos franceses, rendam-se". Pierre Jacques Etienne, o Barão de Cambronne (1770-1842), ficou furioso e respondeu: "Merda! A guarda não se rende jamais!".A frase de Cambronne foi imortalizada no livro "Os Miseráveis", do escritor francês Victor Hugo, e virou uma exclamação usada sempre em situações difíceis e decisivas, logo incorporada pelos atores de teatro.” Guia dos Curiosos__ Língua Portuguesa, Panda Books.

Existe ainda uma versão menos heróica. A causa da expressão seria econômica. Na bélle epóque, muitas carruagens paradas na porta do teatro indicavam duas coisas. Calçadas sujas e bilheterias esgotadas. Quanto mais excremento mais sucesso. Simples, revelador e parecido com a explicação de Freud para a fase anal das crianças.

Se a simpatia pela “merda” é constante no universo do teatro, poucos levaram tão longe esse fascínio quanto o dramaturgo francês Antonin Artaud. O criador do Teatro da Crueldade, que abolia a supremacia da palavra e distância entre o ator e a plateia, via o ato de defecar como uma forma de purificar o corpo e atingir ao sagrado. “Onde cheira a merda, cheira a ser,” escreveu em “Para acabar com o julgamento de Deus.” Foi a senha para que o sentido literal atropelasse a metáfora, saindo dos bastidores para ocupar o centro do palco.

2 comentários:

  1. A matéria está mto boa e interessante. No jornal, então, melhor ainda já que foi complementada com uma diagramação indescritível... Hahahha =**

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