Arrigo é o único canário de Copacabana que sabe assobiar “My funny Valentine” na versão definitiva do Chet Baker (totalmente diferente daquele embuste de 15 minutos do Miles Davis). Mas não é sobre isso que eu vou falar. A questão aqui é o embrulho estomacal que me acometeu quando fui trocar a gaiola do Arriguinho. Esclareço que nada há de errado com a digestão do meu canário e sim com a notícia que ele coerentemente pintou de branco e verde.
Aquilo não devia me afetar tanto. Afinal era só mais uma matéria do periódico carioca enaltecendo a mais nova “nova MPB”. Mas agora os moços dos cadernos culturais não se contentam mais em re-significarem o guri do Los Hermanos, como uma versão higienizada do profeta Gentileza. Deram para falar que essa geração de músicos carece de... críticos e intelectuais, dispostos a pensá-la e encher o mundo acadêmico de teses sobre o Marcelo Jeneci.
Ai, minha aposentadoria... Bem que eu queria dedicar meus dias a estudar o impacto dos sons das enchentes do Estácio na obra de Ismael Silva, mas isso já era provocação. Foram me chamar, eu estou aq... Um momento, por obséquio.
__Desliga, porra!
Malditos vizinhos, escutando Caetano de manhã. Atrapalham minha concentração. Como ia dizendo, resolvi cair na armadilha do jornal e escrever enfim uma série de artigos sobre a produção fonográfica do alvorecer desse século. Mas do meu jeito. Pra começar, eu escolho as bandas. Nada de Fernando Catatau, Orquestra Imperial, Móvel Colonial e desse pessoal que pulula nos recitais do CCBB.
Começo por ilustres filhos dos escassos anos 90. Um grupo que, equilibrando referências aos grandes mestres e ousadas experimentações líricas/musicais, ocupou espaço considerável em programas populares e participou intensamente da folia de vendas que antecedeu o alardeado velório da indústria de discos.
Creio, que a simpática banda liderada por Anderson Leonardo: “Molejo” ou “Molejão”, como seu público prefere, dispensa maiores apresentações. Pessoalmente, eu preferia dedicar esse espaço apenas às novas composições de “Voltei!”, lançado pelo grupo em 2010, mas como a memória da crítica musical brasileira, se não é curta, está muito longe de ser considerada seletiva, cabe aqui umas considerações.
Numa época em que Noel Rosa e a tal cultura do remix ainda não tinham sido adotados (a exaustão) pelos círculos dos “alternês” e “modernex” (ai, as autodenominações...), o Molejão juntava os dois em seu primeiro sucesso radiofônico. “Caçamba”, reúne todas as rimas pra samba inventadas em “O X do problema” em uma única música.
No original de Noel está lá: “o samba é a corda eu sou a caçamba/ e não acredito que haja muamba que possa fazer eu gostar de você”. A releitura do Molejão, de 92, traduz com precisão o pragmatismo e secura daqueles tempos de Collor e grunge. “Traz a caçamba, traz a caçamba que o samba taí/ traz a muamba, traz a muamba e joga tudo aí.” Talvez o amigo leitor não compreenda a utilidade de uma caçamba numa roda de pagode. Antes de questionar pense num lugar mais adequado para se alojar a cerveja e o gelo.
A música que consagrou o Molejo junto ao povo é outra antecipação dos movimentos que dominariam a cena na década seguinte. Com seu refrão hipnótico e videoclipe que remete ao pop de Andy Warhol, “Brincadeira de Criança” propõe um resgate das tradições dos jogos infantis bem antes disso render prestígio e editais no mundinho da cultura.
Se parasse aí, o grupo teria construído uma trajetória interessante dentro da música brasileira, nada mais. Feito o Serguei ou os Mutantes. Mas eis, que após um saudável hiato de dez anos e da superação da saída de Andrezão, eles ressurgem com “Voltei”. O álbum demonstra uma capacidade rara entre os seus contemporâneos: sair do mar pessoal de referências e apresentar um novo discurso, sintetizando sua época.
Vejam os primeiros versos da música que dá título ao disco: “Essa rotina já está estressante/ não agüento mais beber refrigerante/ meu pulmão sabe que eu sou fumante/ vive pedindo um trago a todo instante.” Onde encontrar uma voz tão contundente na contramão do politicamente correto? No “Vanguart”? No “Teatro Mágico”?
A crônica de costumes atinge o seu ápice na canção “Personal Trainer”. Que versos melhor resumiriam os dilemas do marginalizado macho de hoje do que: “ela me enganou/ eu acreditei/ sabia que seu personal não era gay”? Está tudo ali, o desprezo pela nova geração de homens creme-academia-barrinha de cereal, misturado ao medo de ser superado por eles. A confusão das identidades sexuais, a angústia diante das exigências de uma mulher que ele já não satisfaz.
Estrofes adiante “Personal trainer” transmuta-se do realismo ao expressionismo transgressor. “Meu chefe já sabia até folga ele me deu/ Cheguei em casa e disse/ Ai meu Deus/ Fudeu”. Percebem, meus caros, o que o Molejão conseguiu com essa? De modo natural, sem perder a coloquialidade inata de seu discurso, rimaram a palavra mais sagrada do idioma com a mais profana.
A beleza desse verso está em propor sua revolução sem alarde. Nos shows o povo entoa as rimas sem culpa, com gosto. Não precisando convocar uma coletiva de imprensa para tal, o Molejão demonstra que na arte toda palavra é equivalente. Acima da razão a rima, e acima da rima a nota da canção.
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Muito bom, Caixa D'água!! =D
ResponderExcluirkkkk