quarta-feira, 21 de julho de 2010

Folga do ócio

Matéria minha na oficina do Perdiz, que saiu na edição de junho do Jornal de Teatro



Perdiz e o voo interrompido

por Igor Miguel Pereira

Didi e Gogo aguardam Godot numa estrada vazia. Não sabem a razão, o horário ou quem marcou o encontro. Conversas longas sobre nabos, ingleses em bordéis ou a melhor forma de cometer suicídio pendurado numa árvore ajudam o tempo a passar. José Perdiz não pode fazer o mesmo. Vinte anos depois que “Esperando Godot” inaugurou o Teatro Oficina Perdiz, ele enfrenta a incerteza de uma espera igualmente absurda sem o ócio ou os diálogos vadios dos personagens de Beckett. Seu único auxiliar na oficina é mudo e mesmo seu cão Banzé, quase não late.

Se ele aguarda sem tédio que se cumpra a promessa de uma sede nova é porque aos 78 anos ainda não abandonou o hábito de trabalhar. O ferro que retorce todos os dias parece mais maleável do que a combinação que ajudou a enterrar as atividades teatrais por ali: burocracia, legislação confusa e o poder econômico das construtoras interessadas na área. O golpe final teve medidas exatas: 1, 40m. Foi o quanto a parede da oficina teve que recuar para dar lugar ao prédio vizinho. A redução do espaço impossibilitou a encenação das peças. Restaram sobras de cenários passados, recortes de jornal e a velha arquibancada, compondo o mosaico de um tempo em que o brilho dali não era restrito às faíscas laranjas que se soltam da solda de Perdiz.

A graxa do palco

Quando Ivan Marques foi morar com seu tio tentou aprender o ofício de mecânico. Não funcionou muito bem. Tímido e um pouco desengonçado, o rapaz encontrou uma vocação mais adequada nas aulas de teatro da Faculdade Dulcina de Morais. A oficina do tio virou a sede dos ensaios com os amigos da faculdade. Nascia o primeiro palco.

Perdiz gostava da companhia daquele pessoal. Além da admiração que sentia pelo ofício de atuar tinha uma forte identificação com os arroubos da juventude. Natural para um sujeito que havia sido expulso do Partido Comunista por “criar muito caso”. Com a benção do dono, festinhas e outras reuniões começaram a acontecer ali. Numa delas, surgiu a ideia: “por que a gente não faz uma peça aqui?” Da teoria à prática passaram-se alguns anos, recusas e desistências, até que Mangueira Diniz montou “Esperando Godot”, em 1989. Perdiz construía sua arquibancada.

Logo nas primeiras apresentações, um fato raro no teatro de Brasília: casa cheia. E o público ainda aumentaria na peça seguinte. Bella Ciao, que contava a saga de imigrantes italianos, ficou dois anos em cartaz. “Uma das coisas mais belas que eu vi em teatro, foi aqui na oficina do Perdiz, por várias noites, uma placa lá na porta dizendo: volte amanhã, lotação esgotada”, conta o ator Thomaz Coelho no curta “Oficina Perdiz”, de Marcelo Díaz .

O sucesso não garantia a regularidade da programação, o teatro podia ficar ocioso por meses ou ter três, quatro espetáculos brigando por um fim de semana. Tentando resolver a situação, o ator, produtor e dramaturgo Marcos Pacheco apareceu com uma proposta sutil: “Seu teatro é como uma puta, as pessoas vem usam e vão embora. E eu vim aqui pedir a puta em casamento”.

O contrato matrimonial não tinha lá muitas regras. Para se apresentar por lá bastava chegar e marcar. A diferença fundamental foi que o teatro passou a organizar eventos por conta própria e a fazer parcerias para preencher as noites vazias. O aluguel continuava gratuito, apenas parte da bilheteria das peças era usada pra cobrir as despesas. A casa virou a predileta dos grupos universitários e do teatro experimental.

“Peças que marcaram? Ih, foram tantas... O diário do Maldito, Pedido de Casamento em que o Mangueira Diniz inventou dos atores se apresentarem num gira-gira pendurado no teto, Cabaré Danúbio Azul, as Tertúlias de segunda...” Muitas dessas foram premiadas, inclusive as que Marcos Pacheco não conseguiu puxar da memória de imediato, bulindo nos poucos fios de cabelo que se recusaram a cair.

As lembranças de Marcos ganham em exatidão quando fala do personagem que ele levou aos palcos da oficina. Pela ideologia poderia ter sido de Brecht. Pelas histórias e pelo jeitão, de Fellini. Era dali mesmo. “José e agora? O mais sensível dos homens brutos” estreou em 2002, com direção de Mangueira Diniz e com Gê Martur no papel de José Perdiz.

O mais sensível dos homens brutos

Setenta anos antes de José Perdiz virar peça, sua mãe seguia com o nobre propósito de montar uma pequena orquestra de filhos. Infelizmente, nem ele que nascia naquele ano de 1932, nem os outros nove levariam algum jeito pra música.

Se o menino não queria nada com os concertos, bastava a troca de uma letra pra situação mudar. A vocação para as ferramentas revelava seu ofício e sua obsessão. Queria consertar de tudo, até o que não podia consertar sozinho. Aos vinte anos entrou no Partido Comunista, pra dar jeito no mundo.

Preencheu a ficha de filiação e pediu um fuzil. Não deram, e foi a primeira discussão. Vieram outras. Primeiro era o tal do determinismo histórico que era coisa muito demorada. “Vocês me convidaram pra fazer uma revolução e até hoje não começa essa merda. ” Depois foi Stalin. “Ficaram anos convencendo a gente a acreditar no cara, e da noite pro dia ele não prestava mais”. E por fim Deus. “Só porque eu sou comunista que eu vou ter que ser ateu? A religião é que o ópio do povo. Deus não tem nada com isso”. Acabou expulso, no começo dos anos 60.

Arranjou uma carona e foi para o centro-oeste, buscar um outro norte. O trabalho era farto nos primeiros anos de Brasília. Perdiz logo conseguiu um emprego numa firma de revenda de materiais de construção. Completava a renda consertando o que aparecesse. De betoneiras até as camas dos bordéis do Núcleo Bandeirante, que quebravam com grande facilidade naqueles tempos. Como não foi incomodado pela ditadura mesmo tendo uma ficha de arrepiar até a penugem dos quepes no DOPS de Belo Horizonte? “Rapaz, não sei. Deve ter sido meu anjo da guarda. Não tem outra explicação.”

Em 1969 Perdiz compra dois lotes no Plano Piloto e monta sua oficina mecânica. Caiu num golpe comum na época e sem saber adquiriu uma área pública. O erro só lhe causaria problemas após a oficina ganhar fama. Foram várias tentativas de derrubada. A mais agressiva aconteceu em 11 de setembro de 2002.

Os tratores e caminhões chegaram para cumprir o mandato de demolição expedido pelo Governo do Distrito Federal. Perdiz nada sabia, estava no hospital, prestes a sofrer uma operação de hérnia de disco. Sua mulher ligou para quem podia, seus vizinhos também. A mobilização que salvou o lugar envolveu um abraço ao prédio pelos artistas de Brasília, intensa cobertura da imprensa e inúmeras ligações para o celular do então governador Joaquim Roriz.

Seis anos depois, uma demolição muito mais discreta ocorreria. Atendendo determinação da justiça, feita a pedido da construtora que adquiriu as terras vizinhas, Perdiz teve que recuar as fronteiras da oficina, inviabilizando o teatro. A última peça apresentada foi em 2008, “O Diário do Maldito”, de Plínio Marcos.

“É como uma mulher, você pode ser o melhor dos homens, mas se ela quiser ser filha da puta com você, vai ser. Nem por isso você estava errado em ser bom pra ela”. A construtora se comprometeu judicialmente a lhe entregar um prédio novo com um teatro. Perdiz espera sem esperança. Há casos em que a semântica das palavras é irrelevante diante dos fatos.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Crítica de cinema do Galvão

Bem amigos do cinema brasileiro. Caminhava irritado pelas ruas de Joanes... ou seria Cape Town, ou Durban. Sei lá, depois de um tempo, tudo parece com Resende, a aconchegante terra natal do Arnaldo. Enfim, ia com os nervos em flor, porque a Espanha havia acabado de estragar outra das minhas teorias conspiratórias: a que a Adidas tinha manipulado a copa fazendo uma bola que só os alemães conseguiam chutar. Decidi relaxar as tensões assistindo a um bom filme de porrada. Após uma rápida consulta com os repórteres de cultura frustrados que trabalham na ESPN escolhi ver o tal do Kick Ass (Chute no Cu, em bom português).

Acabei com o coração na boca e o grito preso na garganta, como sempre fico ao ver nossa pátria amada vilipendiada de modo covarde. Os gringos estão levando o crédito por um gênero de filme que sempre foi exclusividade nacional: o das criancinhas com armas. Desde Pixote que o Brasil reina absoluto na área. (Tá, eu sei que o Babenco é Argentino, mas tem uns 30 anos que ele vive as nossas custas, é praticamente um Sorín).

A tal meninha do filme pode até ser fofinha com seus palavrões cabeludos e truques de arte marciais. Mas quero ver ela encarar um Dadinho, um pessoal da caixa baixa. Na hora da verdade, a malícia e o veneno do personagem brasileiro prevalecem. Por isso que o resto do mundo vive fuçando nossa cinematografia. Como se não bastasse aquela cópia descarada do Laranjinha com Acerola, misturada com Caminho das Índias ter levado o Oscar ano passado. E tudo por culpa dessa exportação inconseqüente, esses nossos talentos que vão muito cedo lá pra fora, antes mesmo de completar os cinqüenta anos.

Mas é isso aí, não adianta chorar a película queimada. São os novos tempos, a globalização. Temos que nos adaptar, tirar proveito de mais uma derrota pra reiventar o que sabemos fazer de melhor. Quem sabe não dá até pra encontrar uma função pro Felipe Melo nisso aí? Preparador de elenco, assistente de produção, guardião do orçamento. Qualquer coisa que não envolva corações sensíveis ou equipamentos delicados.